sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Beber, Servir, Amar

Cerveja, antes de ser uma paixão, antes de ser inspiração, era apenas um hábito. Um hábito de festas, de bar de faculdade, de churrascos onde a carne de baixa qualidade era 10% da compra e as latinhas semi-refrigeradas eram a atração. Mas depois de voltas que a vida deu, cerveja – e outras bebidas - virou trabalho, e é um pouco disso que vou contar.

Na minha temporada de 1 ano em Londres, entre estudos, passeios, baladas e muita diversão, trabalhei num típico pub britânico, onde pints eram servidas com fish’n’chips, festivais de vinhos e cervejas Ales faziam o calendário e mulheres bebiam exageradamente shots de tequila, apple sours ou sambuca (ah sambuca!). Sim, lá é comum ver mulher bebendo muito mais do que homem. E o final da noite – por volta da 1h da madrugada – é marcado por garotas em suas micro-mini-saias, laços, saltos, penteados e cores neon caídas pelos pontos de ônibus, calçadas, ou sendo atendidas prontamente pelos policiais e carros de resgate. Apenas um sábado de rotina na Inglaterra.

Já no quesito happy-hour, os londrinos são os melhores: às 18h pontualmente estão nos pubs, com suas famosas pints e taças de vinho diárias. Este público, mais adulto, é mais responsável – aliás o rigor da legislação da Inglaterra impressiona: não se dirige alcoolizado em hipótese alguma e, como a supervisão é pesada, isso é seguido à risca. E a noite termina cedo porque o tube (metrô) fecha cedo, por volta de meia-noite.

Foi uma época de beber muito. Mas melhor ainda, de beber bem, de conhecer novas bebidas, sabores e estilos. Bons vinhos são muito baratos, dispensando a dor de cabeça do dia seguinte. E eles fazem presença em openhouses, festas fechadas e reuniões de amigos, comuns por lá, acompanhando as famosas latas de cerveja do tamanho das pints, que eu não gostava por esquentarem rápido demais.  As ciders (cidra, ela mesmo, aquela baratinha do réveillon na Praia Grande) chamaram minha atenção. São variações, sabores e marcas diversas. Eu, que demorei para me adaptar ao sabor e temperatura das cervejas Lagers, me identifiquei bastante com elas, servidas em copos de pint (534ml) com muito gelo. Refrescante e leve, minha favorita era a Koppaberg Pear, garrafa de 500ml, cidra sabor pera. Mas a campeã de vendas é a tradicionalíssima Magners de maçã, fruta pioneira da bebida.

Vinho para quem é de vinho, cidra para quem é de cidra, mas aqui a gente fala de cerveja, não é?

Para mim, que tinha conhecimento limitado a gostar muito de Malzbier (ainda gosto) e saber que nossa cerveja é do tipo Pilsen, confesso que estranhei bastante as Lagers servidas nos taps e, principalmente, as de tipo Ale. Mas o tempo é o melhor amigo da técnica. Comecei a trabalhar no pub – The Moon Under Water, da rede J.D.Wetherspoon - com menos de 1 mês em Londres, inicialmente retirando pratos e copos, mas, mesmo sem muito saber falar inglês, fui arrastada para o bar logo de cara (para brasileira simpática e sorridente, inglês era “só” um detalhe). Foram dias de luta, a ponto de confundir Jack Daniels com Jagermeister, mas eu cheguei lá.

Aprendi a diferenciar por cor as cervejas lagers dos taps (draught beers): Coors Light, Forsters, Kronenbourg 1664, Carling... aprendi a diferenciar sabor, a defender cada uma delas de acordo com a busca do freguês: a mais leve, mais gelada , teor alcóolico... Habilidosa, tirava até 3 pints ao mesmo tempo, sem excesso de colarinho, que para eles é head. Era relativamente simples... tal qual um chopp. A Stella tinha seu procedimento mais peculiar, já que a taça em formato ovalado complicava o meio de campo...

As cervejas Ale eram um episódio à parte... “too bitter beers” para o meu paladar, encorpadas e amargas em grande parte, quando adocicadas era caramelizadas ou com notas de café, chocolate e por aí vai... (vamos falar muito sobre isso ainda). Quando não havia festival ou ação promocional, as frequentes no pub eram a Greene King IPA, Abbot, Pedigree, John Smith’s... estas, mais simples e comerciais, mas mesmo assim uma academia pra tirar: bombar o tap no ângulo certo, velocidade e força certa, e por muitas vezes o maldito barril estava no final e era só espuma. Comum, tanto que o tap era especial com uma bandeja para que pudéssemos sempre retirar o excesso de espuma ou deixar descansando. Em épocas de festival eram até 20 marcas diferentes, e os fregueses davam suas notas. Isso era divertido, ver a percepção de cada um para as Ales do dia. Só que cada dia eram 2, 3 novas e eu, desavisada, sempre me perdia. Afinal, num país cujo sotaque é o pior e um cidadão em seus 60 anos, falando na velocidade da luz pede uma cerveja que nunca se ouviu o nome e nem se sabe que está servindo: confusão na certa. Até o dia que eu aprendi a checar as Ales do dia e memorizar seus nomes. Algumas tinham o bico em forma de “chuveiro”, tinha que deixar descansando (settling down), eram servidas com ou sem colarinho... foram sextas e sábados de luta e copos quebrados. Queria me irritar? Half-pint. Acaba com a graça da brincadeira. Pior que isso, degustação dos festivais em copos de 1/3 pint. Praticamente um copo americano, faltavam as saudosas listras no vidro...

E então ela, a Guinness. Era a favorita do Nick, um – queridíssimo - colega do pub, que me ensinou a aprecia-la. Nas primeiras vezes, eu a achava tão forte que dizia que tinha gosto de carne. As exatas palavras dele foram : “No, it’s a whole meal in a glass!” (não, é uma refeição inteira num copo!). Lembrar do Nick é engraçado, eu sempre dizia que no dia que eu entendesse o que ele falava, eu entenderia qualquer idioma... Enfim, a Guinness! Dona de uma pint toda especial, com seus jeitos e trejeitos ao servi-la, tem porte, tem marca, tem presença. Tanto que a própria Guinness acompanha os bartenders ensinando-os como servi-la perfeitamente de tempos em tempos. E seus assíduos consumidores sabem como deve ser, e ficam em cima. Experimente servir uma Guinness espumante à um britânico ou irlandês e verá a mesma espuma sair da boca deles! Pressão total, medo. Mas, de tanto ver, ouvir e aprender com o Nick, nem foi assim difícil. A Guinness perfeita vem de um copo perfeitamente limpo, seco e nunca quente ou recém-lavado, colocado de ponta-cabeça em prateleiras separadas. Antes de abrir o tap, respire fundo e saiba que não é uma cerveja qualquer! O copo –com a logo da Guinness, que é estampado em local estratégico – deve estar a 45 graus, com o bico do tap dentro do copo, quase a ponto de tocar o conteúdo. Com o copo cheio na exata altura do logo (ou 2/3 do copo, que como é em formato de tulipa é difícil quantificar certamente), PARE! Espere, assista o movimento do líquido escuro e denso tomando forma. Quando todo o liquido estiver finalmente rubi, sem muito balanço volte o copo reto para o tap, abrindo-o na posição oposta (da mesma forma do colarinho das lagers). A Guinness então será servida com mais vida, o fundo do copo completamente homogêneo e rubi, seu meio em movimento e um perfeito dedo de colarinho. Era sempre minha melhor criação!

Hoje, vou frequentemente à pubs como o O’Malleys e sinto o desgosto de uma pint de Guinness mal tirada. E aprender a degusta-la foi outro grande passo. As mulheres britânicas tem o hábito de colocar Syrup Blackcurant na Guinness, deixando-a mais adocicada. É como um chopp com groselha. Eu também comecei assim, mas com o tempo me tornei uma apreciadora da bebida em sua forma real.

Entre coisas novas, nem tão novas ou apenas diferentes, tinha as cervejas com menta ou blackcurant, a Strongbow, uma draught cider, mais forte, servida no tap com as mesmas conveniências das lagers, e, um dos meus velhos hábitos, a Snake Pint, que era uma mistura de Lager, Strongbow e Blackcurant. Teor alcoólico alto, fazia muito sucesso nos bares australianos, como os Walkabout da vida... Aliás, era proibido servir Snake Pint se não houvesse licença para tal. No meu pub não podia.

E, claro, os zilhões de diferentes rótulos de cerveja de garrafa de todo o mundo, com destaque das cervejas do leste europeu, com muita saída, como Tyskie, Lech, Efes, etc. Além, claro, das muito vendidas Corona, com limão na boca da garrafa, San Miguel, Budweiser e Beck’s.

De volta ao Brasil, com um sentimento de nostalgia ao relembrar tudo que vivi nas terras frias da rainha e com realidades (financeira, climática, social e com a mente muito mais aberta) tão diferentes daquela época, com toda esta “carga” ficou impossível não dar continuidade na vida de bar. O gosto pela bebida, em especial pela cerveja, me levou à diversas questões, em especial da relação masculina alusiva à cerveja, e em quanto este ponto de vista é falho. Ver tantas mulheres, servi-las e ver suas conclusões abriu um mundo de indagações e sede. De cerveja e de conhecimento!

Foi um post longo, mas também dividir uma experiência tão intensa como essa não poderia ser tão breve.

Cheers!

Um comentário:

  1. Muita experiência mesmo.
    Dá para imaginar algumas cenas pelo teor e tonalidade de recordação, percebido na leitura.
    Deu vontade de experimentar... as cidras kkkk
    Ok, o blog é de cerveja, mas as cidras foram comentadas, e me apeteceram. kkkkk

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